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“Glória” não é perfeita, mas é uma das melhores séries portuguesas dos últimos anos

A primeira série nacional da Netflix continua a ser uma das mais vistas no nosso País. Tem dez episódios.

Duas semanas depois da estreia, voltamos a “Glória”, a primeira série portuguesa da Netflix, para refletirmos sobre ela. Desde 5 de novembro, o dia em que chegou à plataforma de streaming, que a produção não abandona o top 10 do catálogo em Portugal. 

Ao todo tem dez episódios. A história que é contada em “Glória” é muito pouco conhecida, inclusive em Portugal. Entre 1951 e 1996, na aldeia da Glória do Ribatejo, concelho de Salvaterra de Magos, funcionou a Rádio Retransmissão (RARET). Tratava-se de um centro de transmissões americano que emitia propaganda ocidental para o bloco de leste.

O regime de Salazar não era capitalista, mas desprezava ainda mais o comunismo. Por isso, o ditador português e os americanos foram aliados durante os anos da Guerra Fria que coincidiram com o Estado Novo. Ainda assim, as relações eram relativamente tensas.

Nesta narrativa fictícia, inspirada neste contexto histórico real, acompanhamos João Vidal (Miguel Nunes). Filho de um secretário de estado, e depois de ter servido na Guerra Colonial em África, vai para a RARET trabalhar como engenheiro. Só que João esconde um segredo — que é assumido logo à partida na sinopse de “Glória”. Foi recrutado pelo KGB e por isso vai assumir uma série de missões de espionagem durante o período em que está ao serviço da RARET.

João enfrenta vários dilemas. Se por um lado é leal ao KGB, ao mesmo tempo também não está propriamente disposto a sacrificar inocentes pelo sucesso das suas missões. Juntando isso ao facto de estar intimamente ligado ao regime do Estado Novo, torna-se numa personagem complexa, de motivações difusas.

Vamos acompanhando os seus dias na RARET e na Glória do Ribatejo: João convive regularmente com os colegas na pequena comunidade, mantendo uma vida secreta enquanto agente ao serviço dos soviéticos. Porém, por causa da família, também é próximo dos americanos que gerem o centro de transmissões e que têm uma agenda própria.

O seu grande objetivo pessoal parece ser descobrir o que aconteceu à agente Mia (Victoria Guerra), que o terá recrutado e treinado. Também estava destacada na RARET, até desaparecer misteriosamente.

Escrita por uma equipa liderada por Pedro Lopes, e realizada por Tiago Guedes, “Glória” é sem dúvida um bom cartão de visita de Portugal na Netflix. Não se tornou, como já percebemos, um fenómeno global (algo que seria muito improvável), mas demonstra a qualidade que pode existir na ficção audiovisual nacional.

Esta série é aquilo a que podemos descrever como um slow burner, uma história construída de forma lenta e que aos poucos nos vai dando respostas, enquanto a fasquia aumenta. A verdade é que “Glória” nunca se torna aborrecida — e há tempo para explorar diversas personagens e as dinâmicas entre quem defende o regime, os americanos, os habitantes locais e os comunistas. 

O maior erro que podemos apontar ao guião tem a ver com alguns elementos específicos, que parecem não ser propriamente lógicos — coisas pouco justificadas sobre atos de determinadas personagens, como o atentado promovido por Ermelinda ou a relação secreta que Sofia mantinha com Mia. Destoam da generalidade da narrativa, que prima pela consistência. 

Uma das melhores qualidades que podemos apontar a “Glória” é a forma como retrata os anos 60. Tanto o guião como a direção de arte são exímios neste aspeto. Por exemplo, é importante que a série retrate a violência exercida sobre as mulheres na altura. A história de Ramiro e Sofia é especialmente relevante por isso. E é importante que demonstre quão as oportunidades reduzidas que as pessoas pobres do campo tinham na época. Carolina nunca tinha visto o mar até João a levar à praia. O absurdo e horror da guerra também está bem retratado e, a partir de várias perspetivas.

Do ponto de vista mais técnico, a série é irrepreensível. Tiago Guedes, certamente um dos melhores realizadores portugueses, é a pessoa ideal para levar aos ecrãs da Netflix esta história contada através de planos certeiros e valiosos.

Apesar de todo o elenco estar muito bem — destaque para os papéis de Afonso Pimentel, Carolina Amaral ou Adriano Luz, entre outros — a grande estrela é mesmo Miguel Nunes. O ator consegue encarnar na perfeição esta personagem ambígua, de várias camadas. Misterioso, é assombrado pelos terrores da guerra. Tanto é cerebral como impulsivo. Dez episódios depois, continua a ser um enigma.

A série termina com um apelo óbvio: por favor, deixem o projeto continuar numa segunda temporada. Claramente há vários caminhos por explorar, especialmente quando descobrimos o plot twist que conclui a história. Seria bom poder assistir à continuação de “Glória”. Mas é ainda mais importante que a plataforma de streaming mantenha a porta aberta para que argumentistas, realizadores, produtores, técnicos e atores portugueses possam criar novos projetos para o mundo.

Outro dado curioso é que, por estar na Netflix, “Glória” foi provavelmente uma das séries nacionais mais vistas e faladas pelo público português (sobretudo o mais jovem e urbano) ao longo deste ano. Assim, pode ser que faça com que estes espectadores procurem outras produções locais. Urge quebrar a barreira que existe (mas, possivelmente, cada vez menos) entre a audiência e a ficção nacional.

Há outros bons exemplos de ótimas séries nacionais que estrearam nos últimos anos, mas “Glória” entra para a lista das melhores dos últimos anos. Depois da Netflix, há-de estrear em sinal aberto na RTP1. A estação pública produziu a série em conjunto com a SPi.

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